Os tormentos voluntários
O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 5 - itens 23 e 24, Bem-aventurados os aflitos, Boa Nova Editora.
O homem está
incessantemente em busca da felicidade que lhe escapa sem cessar, porque a
felicidade sem mescla não existe sobre a Terra. Entretanto, apesar das
vicissitudes que formam o cortejo inevitável desta vida, poderia pelo menos
gozar de uma felicidade relativa, mas ele a procura nas coisas perecíveis e
sujeitas às mesmas vicissitudes, quer dizer, nos prazeres materiais, ao invés
de a procurar nos prazeres da alma que são um antegozo dos prazeres celestes,
imperecíveis; em lugar de procurar a paz do coração, única felicidade real
deste mundo, é ávido de tudo aquilo que o pode agitar e o perturbar; e, coisa
singular, parece criar propositadamente tormentos que não lhe cabe senão
evitar.
Haverá maiores
tormentos que aqueles causados pela inveja e o ciúme? Para o invejoso e o
ciumento não há repouso; estão perpetuamente em febre; o que eles não têm e o
que os outros possuem lhes causam insônia; os sucessos dos seus rivais lhes dão
vertigem; sua emulação não se exerce senão para eclipsar seus vizinhos, toda
sua alegria está em excitar, nos insensatos como eles, a cólera do ciúme de que
estão possuídos. Pobres insensatos, com efeito, que não sonham que talvez
amanhã lhes será preciso deixar todas essas futilidades cuja cobiça envenena
sua vida!
Não é a eles que se
aplicam estas palavras: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”,
por que seus cuidados não são daqueles que têm sua compensação no céu. De quantos
tormentos, ao contrário, se poupa aquele que sabe se contentar com o que tem,
que vê sem inveja o que não tem, que não procura parecer mais do que é. Ele está
sempre rico porque, se olha abaixo de si, em lugar de olhar acima, verá sempre
pessoas que têm menos ainda; é calmo, porque não cria para si necessidades
quiméricas, e a calma, no meio das tempestades da vida, não será felicidade? (Fénelon,
Lyon, 1860).
Todo mundo fala da
infelicidade, todo mundo a experimentou e crê conhecer seu caráter múltiplo. Eu
venho vos dizer que quase todo o mundo se engana, e que a felicidade real não é
tudo aquilo que os homens, quer dizer, os infelizes, a supõem. Eles a veem na
miséria, no fogão sem lume, no credor ameaçador, no berço vazio do anjo que
sorria, nas lágrimas, no féretro que se acompanha de cabeça descoberta e de
coração partido, na angústia da traição, na nudez do orgulhoso que gostaria de
se cobrir de púrpura, e que esconde com dificuldade sua nudez sob os farrapos
da vaidade; a tudo isso, e a outras coisas ainda, se chama de infelicidade na
linguagem humana. Sim, é a infelicidade para aqueles que não veem senão o
presente; mas a verdadeira infelicidade está nas consequências de uma coisa
mais do que na própria coisa. Dizei-me se o acontecimento mais feliz para o
momento, mas que tem consequências funestas, não é, em realidade, mais infeliz
que aquele que causa primeiro uma viva contrariedade, e acaba por produzir o
bem? Dizei-me se a tempestade que quebra vossas árvores, mas saneia o ar
dissipando os miasmas insalubres que causariam a morte, não é antes uma felicidade
do que uma infelicidade. (...)
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